Para ler e meditar
One last thing sobre a participação portuguesa nos Jogos Olímpicos
"Vi ontem, na televisão, um jovem canoísta envergonhado chamado Emanuel Silva, após falhar a qualificação para a final de canoagem (K1 1000 metros), agradecer aos portugueses todo o apoio que lhe foi dado, ao mesmo tempo que pedia desculpa por ter, eventualmente, «desiludido em alguma coisa». «Desiludido», dizia, com um rosto assustado. Comentava então alguém, e com razão, que nos começamos a parecer com a China -- sem as medalhas, naturalmente. A China que enxovalha os derrotados. Que gosta de vergar os vencidos.
Tudo isto fez-me pensar na quantidade de comentadores portugueses que, diariamente, assinalam as falhas dos nossos atletas nos jornais ou na blogosfera, acusando-os de falta de perseverança e responsabilidade, e apontando-lhes, inclusivamente, o facto de não terem a obsessão mental dos outros (leia-se, dos Phelps deste mundo).
Bem sei que somos, cada vez mais, o país dos self-made men. No entanto, tanto quanto sei sobre muitos destes comentadores e os seus méritos caseiros, os mesmos nunca entraram em rankings internacionais, nunca competiram lá fora, nunca atingiram mínimos olímpicos, nem, possivelmente, possuem qualquer talento relevante que lhes permita, um dia, representar Portugal. Embora, claro está, não seja de todo improvável que o venham a fazer.
Por este mesmo motivo, dirijo-me a alguns destes meninos que, entre cunhas, lá conseguiram uma coluna de jornal. Desde logo para lhes perguntar se sabem o que é acordar às seis da manhã para ir treinar, nadar, saltar ou atirar bolas, dardos e outros pesos, para dar entrada, três ou quatro horas depois, num qualquer escritório ou repartição, matando-se a trabalhar até às 8 da noite ou coisa que o valha, daí voltando para o sítio onde treinam, nadam, saltam, atiram bolas, dardos e outros pesos. Se sabem o que é ser-se amador durante metade do dia, com contas para pagar e credores que exigem algo mais do que a honra que aqueles meninos associam à bandeira nacional. Ou se têm consciência, por exemplo, da quantidade de atletas que, até há bem pouco tempo, pagava do seu próprio bolso os sapatos de corrida (dois pares por semana, segundo me constou), algo que não sucede com os atletas etíopes ou quenianos (países que apostam em poucas modalidades onde são tradicionalmente fortes) ou com atletas da ex-URSS (e que por muitos e bons anos vão continuar a colher os frutos da cultura e estruturas desportivas do mundo soviético).
E quanto aos atletas profissionais: será que Naide Gomes, recordista nacional, campeã do mundo e da Europa de salto em comprimento, precisa de obsessão? Depois de tudo o que ganhou, será que lhe falta dedicação? Ou será que esta, como outras atletas profissionais, tem incomparavelmente mais qualidades do que a quase totalidade dos portugueses junta, e sobretudo, mais talento do que o bando de falhados que decidiu escrutinar a prestação olímpica da mesma? Será difícil de perceber que, nas últimas duas semanas, os nossos atletas, mesmos os atletas profissionais, passaram a carregar nos ombros a salvação de uma reputação olímpica que não existe? Será tão difícil de ver que, quando partiu para um terceiro salto na meia-final de salto em comprimento, Naide Gomes devia estar a pensar nela própria: em conseguir a marca que todo o mundo, menos Portugal, sabe que é a dela; a marca que lhe deu os títulos que tem, que fez dela a mais séria candidata ao título olímpico da modalidade?
Infelizmente, suspeito não ter sido nisto que Naide Gomes pensou. Pelo contrário, diria que, enquanto corria para o terceiro salto, esmagada pela responsabilidade de um país que cada vez mais se parece com uma agremiação de pretensiosos sem pinga de solidariedade pelo próximo, Naide Gomes pensava no mau que seria falhar, no quanto seria trucidada pela critica, nos comentadores, nos gordos anafados e idiotas, nos portugueses mundialmente anónimos mas pejados de vaidade que por cá andam e ficam, sempre, todos os dias, gozando com os que vão e ousam voltar, que pisam, criticam, exigem e impõem. É muito em que pensar. E foi por isso que Naide Gomes falhou. Como se esperava, aliás. Como sucederia com a generalidade dos atletas norte-americanos ou jamaicanos em idêntica situação.
Cheira-me, enfim, que nada disto foi pensado por estes comentadores, pagos para falarem sobre tudo quando pouco percebem sobre nada. Há quem chame a este fenómeno «opinião». Outros limitam-se a um folclórico «entretenimento». Eu chamo-lhe hipocrisia. E proponho-lhes, para fins propedêuticos, que os autores se dediquem a um desporto: caça. Fazendo de caça, naturalmente. Eu largo os cães.
Vêm, depois, as justificações dos meninos comentadores. Afinal, o que os move, é ambição. Querem ser mais, querem ser melhores. Estão frustrados com o seu tempo. Com os feitos da nação. São a geração que quer mais e melhor, e que se segue à geração que queria mais e melhor que, por seu turno, veio substituir a geração que queria mais e melhor. A geração que descobriu que as exigências de mais e melhor apenas se aplicam aos que efectivamente tentam mais e melhor, e que tudo o mais -- o Estado, o mercado, o PSI 20, os funcionários públicos, os impostos -- são uma realidade separada, algo que não merece, neste âmbito, ser objecto das suas considerações habitualmente inúteis.
E é a isto que um Gustavo Lima se sujeita. Afinal, faltou-lhe obsessão. Se ele tivesse obsessão, perceberia que, contrariamente ao que diz, não é inconcebível dedicar a vida à vela e a Portugal. Mesmo sabendo que mil euros mensais são uma miséria para quem tem poucos anos de carreira pela frente; que nada deve à bandeira dos que o insultam; que o seu esforço levou ao sacrifício de tempo e oportunidades irrecuperáveis.
A geração dos meninos comentadores tem língua afiada. Mas esqueceu-se do futebol. O desporto da equipa de milhões, paga, patrocinada, motivada a peso de ouro, que nem sequer foi aos Jogos Olímpicos. E esqueceu-se do hóquei, aquela modalidade que nós portugueses gostamos muito -- embora não tenha dignidade olímpica -- e que entretanto definha sem títulos recentes. Esqueceu-se, ainda, do próprio râguebi, o desporto de heróis trabalhadores que geraram três derrotas num tempo verdadeiramente olímpico. E esqueceu-se porque, num português, somente a maldade é actual.
Os factos são simples: Portugal não é um país de medalhas olímpicas porque tal implicaria ser um país que não somos nem temos condições para ser. Pior do que isto é constatar que jamais o seremos. Com efeito, se há 4 anos, os miúdos, entusiasmados pelos jogos, procuravam em Setembro inscrever-se nas modalidades desportivas que mais os atraíam -- desmobilizando antes de Outubro, pois elas não existiam nas escolas onde os portugueses fingem que estudam -- no futuro nem isso veremos. Afinal, depois de desancarmos os atletas que temos, quem, no seu perfeito juízo, se atreve a representar este país, sob uma bandeira que mais não faz que os humilhar?
Resta-me, português anónimo que sou, deixar um pedido de desculpas aos atletas portugueses. Aos que foram aos jogos olímpicos e aos incautos que, no futuro, tentarão repetir a gracinha. E constatar que, salvo estes atletas, gente que ainda perde tempo com a nossa bandeira, nós somos uma merda. Como país, como pessoas, como portugueses. Uma merda. E isto é tudo o que eu tenho a dizer sobre o assunto."
publicado por Jacinto Bettencourt, in 31 da Armada
1 Comments:
Eu acho realmente preocupante que este país se dê ao luxo até de descartar das pessoas que se fazem a si próprias, como parecia ser o caso do Gustavo Lima, do João Costa, entre outros. Porque este país é sempre o mesmo: o país que vive do talento e não do esforço, que esquece terminantemente que o talento sem esforço não se desenvolve e que aqueles que chegam longe têm ainda maior mérito do que os da maioria dos outros países. Concretamente, no que diz respeito ao desporto e aos Jogos Olímpicos, li há tempos que havia um nadador que tinha que ser muitas vezes arrancado da cama pelo treinador para ir treinar... um nadador chamado Michael Phelps. Escusado será dizer que este tipo de persistência me parece utópica em Portugal. Os portugueses, para ser campeões, não podem estar à espera que os motivem, têm que se auto-motivar, ou seja, têm ainda que ter mais motivação do que os outros, porque se não a tiverem, provavelmente ninguém a terá por eles. Posto isto, sabendo que são eles que têm que puxar por si próprios para "ir treinar para as competições que se vêem ao fundo do túnel" (refiro-me a uma preparação para os Olímpicos com três anos de antecedência, por exemplo), a grande força que pode manter um atleta bolseiro sem patrocínios ou treinadores será o facto de representar um país, um povo, uma nação. Pois bem, sabendo então eles que estão a ser machadados por esse povo, a grande força motivacional que vale o sacrifício e auto-motivação a todo o custo de um atleta cai por terra. Não sei qual terá sido a frustração de muitos desses atletas terão sentido após estes anos de esforço e o choque do fracasso. Mas sei muito bem o que é suar em bica e não chegar à meta.
Andam estes portugueses de meia tigela armados em sovinas por causa de 14 ou 15 milhões de euros, que face ao que o Estado contribuiu para o Estádio do Algarve, da Luz, de Alvalade, é uma fatia pequena de um grande bolo. Subscrevo, somos mesmo uma merda de povo. Um povo que reclama pagar 50 cêntimos pela p"#%&! de uma portagem na CREL, mas paga mais pela merda de uma chavenazinha de café, com a qual os comerciantes têm mais de 100% de lucro. Mas futebol e café entretêm a populaça deste país, agora portagens e o maior evento desportivo do mundo, isso já não. Para além de sermos geograficamente pequenos, somos mentalmente pequenos. E é por isso quem é grande em Portugal é especialmente grande, especialmente no que ao desporto diz respeito. É por isso que, a meu ver, Nélson Évora merece uma palavra de agradecimento e admiração, não só por dar uma honra que este país não mereceu (e ele humildemente ainda agradeceu), como pelo empenho e trabalho necessários para subir do 40º lugar em Atenas (que se fosse hoje, seria um lugar de um bom "turista") para o primeiro em Pequim.
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