Sunday, February 26, 2006

Drama vivido na terceira pessoa...

No outro dia ia o Ricardo razoavelmente descansado no autocarro, no seu tradicional trajecto rumo a Lisboa, quando o mesmo abrandou a sua marcha. Estancou, mesmo. Em plena auto-estrada.

Isso só poderia - àquela hora - querer dizer uma de duas coisas: ou o motorista tinha ficado com um medo súbito de conduzir veículos com mais do que cinco lugares... ou então tinha havido um acidente.

Ora, o Ricardo conhece quase todos os motoristas que lhe servem de chaffeur - aquele não era excepção à regra - e todos eles lhe parecem pessoas de bem. Parece-lhe o tipo de pessoas que não padece de fobias repentinas e, mesmo que padecesse, parece-lhe o tipo de pessoas que tomaria os comprimidos a tempo e horas.

E por isso, o Ricardo concluiu que só poderia ser acidente.

À distância de uma chapada encontrava-se um trio de senhoras de idade que já vinham em animada cavaqueira, fazendo POLUIÇÃO SONORA! ... o Ricardo pede perdão; na realidade, vinham era a falar de coisas que NINGUÉM QUER SABER! ... novamente, as mais sinceras desculpas do Ricardo; vinham, isso sim, a falar de champôs, calos, pão de ló, vestidos com folhos e corriqueirices de vizinhança do lado. Enfim, tudo assuntos do mais alto interesse.

E não se calavam um segundo que fosse.

Estas são, aliás, da mesma estirpe de senhoras que mesmo que o Godzilla lhes passasse à frente elas não se calariam. Não ficariam abismadas em silêncio. Não. São o tipo de senhoras que continuaria a palheta dizendo: "Olha para aquilo! No meu tempo, as lagartixas eram bem mais pequenas e não andavam por tudo quanto é sítio! A culpa disto é daquela coisa dos lixos tóxicos, dos Chernobys ou coisa que o valha!"

Mas o Ricardo já se está aqui a perder.

As ditas senhoras vinham num animado paleio, que de imediato interromperam para dar o seu parecer sobre o facto incidente, aparentemente a todo o mundo, apesar de ninguém querer realmente saber o que elas pensavam.
Mas elas deram na mesma.

- "Olha-me que este trânsito... e agora parámos! Querem ver que houve acidente? Cheira-me que sim. Todos os dias é a mesma coisa!"

- "Eu já disse à minha Joaquina: Olha que tu apanha-me o autocarro mais cedo senão não chegas a tempo à escola! É que este mundo anda maluco! As pessoas parece que andam desvairadas!"

Lutando contra a vontade de se auto-mutilar, para com a dor desviar a sua atenção de tão exasperante diálogo, o Ricardo pensou para consigo mesmo: "Vá, Ricardo Jorge, já só falta, tipo, sei lá, menos de uma hora para chegar ao Campo Grande... Vá! Força aí! Tu consegues!"

Mas aquelas senhoras tornaram isso no limiar do impossível.

Mais à frente, justificou-se o esperado: um acidente. Dois carros espatados, um com a traseira desfeita, e o outro, respectivamente, com a dianteira em igual estado decrépito.

E fez-se de novo ouvir a veemência com que aquelas senhoras debitavam certezas no ar.

O Ricardo julga que algures perto da terceira idade a Mulher atinge o Zen, o estado guru, pois a forma como aquelas senhoras ditavam verdades não pode ser considerada obra do acaso.

Disse uma delas: "Pois isso sabe-se! Vão todos colados ao carro da frente e depois é o que se vê!"

Acrescentou outra: "É que basta travar um bocadinho, seja porque razão for, que o de trás não tem tempo de reagir! E depois dá nisto!"

A terceira abanou simplesmente a cabeça, lançando um grunhido em sinal de aprovação, como que a dizer "Concordo plenamente e não consigo acrescentar aí mais informação inútil! Tá perfeito!Siga para o próximo bitate!"

Naquela altura, revelou-se agonizantemente complicado não levar a cabo um acto que colocaria, no dia seguinte, nas manchetes de primeira página de todos os jornais - desportivos inclusive! - algo como "Jovem universitário mata três idosas à paulada com um banco de autocarro em plena A1".

Mas o Ricardo aguentou-se. Ah valente!, pensou o Ricardo. A pior parte já passou. Agora que já passámos o acidente, e elas vão voltar a falar da dor do reumático, e do vestido azul da Constança, a neta da Maria Adelaide, tudo vai ficar bem. Isso aguentas tu bem. O pior já passou...

Mas não.

Não.

Duas delas continuaram na mesma verborreia que apenas apoquenta, mas a outra... ah, a outra decidiu tomar uma postura mais hostil. Porquê falar para o ar quando... ela podia falar directamente para a pessoa?

A vítima: o Ricardo, que ali mesmo de fronteira ia a tentar dedicar - com muito esforço, acreditem! - a sua atenção a uns apontamentos de estudo.

É de notar que para este tipo de senhoras qualquer coisa serve de desculpa para interromper os outros de uma forma disfarçadamente delicada. Quando este tipo de senhoras decide interromper, não há como interromper o avançar deste.
É o equivalente a tentar deter uma manada de elefantes em debanda com um sinal de STOP.

- "Ai, tás a estudar... O meu neto, o Jorge, também estuda, lá naquela coisa dos computadores e das engenharias... dizem que aquilo dá dinheiro... Acho que ele faz bem, mas eu cá preferia que ele fosse médico... Vocês são uns privilegiados, sabiam? No meu tempo não havia nada disto! Não tinhamos dinheiro nem para comer às vezes, quanto mais para estudar! Lá em casa, em dias de banquete, era um carapau para toda a família ao jantar! O meu pai comia a cabeça para que nós pudéssemos comer o rabo do peixe... dizia que gostava mais da cabeça... ai, meu santo pai, que Deus o guarde! Eu já disse ao meu Jorge: Tu aproveita-me esta vida boa que levas agora, que vida como esta não voltarás a ter!"

Aqui e ali, o Ricardo suspirava uns "Uh hum" e uns "Pois", mas com aquele ar de quem está prestes a espirrar o cérebro em papa pelo nariz.

E isto processou-se até ao fim da viagem. Até ao chegar ao Campo Grande. Até ao estancar definitivo do autocarro.

O Ricardo, visivelmente combalido mas a tentar disfarçar, saiu do transporte com o sorriso nervoso de quem está a pensar "Mental note: quando chegar a casa, matar a minha mãe com requintes de malvadez, pois se ela não me tivesse posto no Mundo eu não teria passado por isto".

Com aquele sorriso nervoso que diz que se alguém tiver o azar de tentar aquela brincadeira do "Adivinha quem é", pondo as mãos sobre os olhos ou dando aquele toquezinho por trás no ombro, esse alguém acordará, mais tarde, deitado, a olhar para umas luzes no tecto, com uma cara sorridente ao lado a dizer: "Ah, já acordaste? Olha, boas notícias: os médicos dizem que acham que vais voltar a andar outra vez..."

Que era o que aquelas bruxas mereciam! Era abrirem a boca e PAH! Lá vai placa! E espancá-las com os próprios seios! E enfiar-lhes um barrote ânus acima e dizer-lhes "Hã? E no teu tempo, era assim? Hã? ERA?"

... Mas não. O máximo que se fará será um pobre diabo traumatizado despejar todo este drama para o papel ou para um qualquer blog, mas relatando e passando o acontecido para outra pessoa do singular. Assim, parecerá que aconteceu a outro. Sim, a outro. E tudo ficará bem.
Sim, tudo ficará bem...
Tudo... bem...
Bem...

2 Comments:

At Wed Mar 01, 02:08:00 AM 2006, Blogger Miguel Costa said...

pois aqui o je também já ouviu a historia do carapau para 3, é engraçado como são sempre os pais a comer a cabeça, prometo um dia quando contar a mesma historia aos meus netos, reduzir o pobre peixe para uma sardinha dando assim um ar muito mais dramatico à coisa.

 
At Wed Mar 01, 08:16:00 PM 2006, Blogger Jane said...

2 palavras: head phones!
são sempre uma boa desculpa pra n dirigir palavra a seja kual for o desconhecido k decida meter conversa, normalmente kd n estamos interessados nela...
head phones esses k podem estar ligados a kk coisa k dê musica ou n (pode-se sempre fingir k estamos demasiado embrenhados numa musica k ate n existe.. mas o resto das pessoas n sabe :P)
mas se realmente se está a ouvir musica, pode-se sempre imaginar as tais conversas das velhinhas de um modo mt + interessante.. e isto agora deixo à imaginação de cada um..
pronto, espero k ajude outros tantos ricardos k sofram do mal dos transportes públicos..
JCH

 

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