Suspeito que Deus não gosta de mim.
Pode, se adregar, ter algo a ver com o facto de eu não acreditar n'Ele.
Não acreditar em pessoas - ou divindades, neste caso - pode levar a um certo arreganho da parte do alvo desse desabono.
As divindades podem, até e inclusive, ser mais assanhadas nesta coisa do rancor fruto da depreciação do que um mero saco de carne humana.
É que as entidades omni-tudo-e-mais-um-par-de-botas estão mal habituadinhas, e tudo por nossa culpa.
Não sei se já repararam, mas Elas já esperam reverência da nossa parte.
É a Elas que o populacho agradece as coisas boas que lhes calha.
Elas têm santuários onde as pessoas se deslocam propositadamente para a Elas orar.
C'um camandro, Elas até têm pratinhos, daqueles com luzes estroboscópicas e que se vendem nas lojas dos chineses, com a figura d'Elas ao centro.
Já o meu tio Luís, por exemplo, não tem nada disto.
Quer-se dizer, também não é bem assim.
Costumam agradecer-lhe quando ele, após comer quatro ou cinco carapaus bem regados com vinho tinto carrascão ali no tasco do sr. Castro, arrota para o lado em vez de inundar as pessoas com o cheiro a peixe azedo.
Tem quem reze por ele: ele mesmo, quando a mulher lhe aparece à porta da taverna e cospe-se toda aos berros com as palavras "
Reza para que hoje não passes a ombreira de casa com uma carraspana igual à do outro dia, Luís Miguel! Reza!".
E tem uns pratinhos com menção a ele... bom, não têm a imagem dele, têm só o nome dele, e regra geral usam-se ao lado do pratinho com o nome da consorte ou da irmã ou do que é que é, e não têm luzes de espécie estroboscópica alguma, mas também se podem encontrar no chinês, pelo que já é um aceitável ponto em comum.
Por estas e por outras, eu até que diria que Deus e o meu tio Luís estão ali ela por ela.
E assim sendo, diria que Deus não gosta de mim da mesma forma que eu não gosto do meu tio Luís.
Quando, nos meus 12 anos, eu disse que ia ser isto, aquilo e o outro, o meu tio não acreditou em mim.
Disse que, quanto muito, eu tinha gabarito para ser apenas este e aqueloutro.
E voltou a desacreditar-me uns anos mais tarde, quando me perguntou "
Olha lá, viste o abre-latas?" e eu respondi "
Está na sala, no cinzeiro da mesinha de vidro".
Na altura - nunca mais me esqueço - ele olhou-me com aquele olhar de como quem diz "
O abre-latas... na sala... dentro de um cinzeiro... e numa mesinha de vidro... pois claro que está", para logo a seguir ignorar-me e vasculhar todas as gavetas da cozinha à procura do abre-latas, inclusivamente a última gaveta, aquela lá mais rasteira, onde ele bem sabia que as únicas coisas que lá se guardavam eram os
napperons e as toalhas de mesa que só se usam no Natal e na Páscoa.
Quando o abre-latas esteve, durante todo aquele tempo, na sala.
Dentro do cinzeiro.
Em cima da mesinha.
A de vidro.
Talvez esta coisa da crença e do desgosto possa até ser uma pescadinha de rabo na boca, ou seja, o meu tio não acredita em mim da mesma forma que eu não acredito em Deus da mesma forma que Deus não acredita no meu tio Luís e o meu tio não gosta de Deus da mesma forma que Deus não gosta de mim da mesma forma que eu não gosto do meu tio Luís.
E não me custa a acreditar que Deus não acredita no meu tio.
Afinal de contas, até parece impossível que exista alguém que arrote de forma tão desabridamente acre como ele.